A Constituição da República de 1988 e as normas infraconstitucionais dela decorrentes formaram um ordenamento jurídico esportivo mais amplo, passando a regular não só a paridade de armas nas competições, mas também os eventos e o trato com seus torcedores/consumidores, a tributação das atividades esportivas, as entidades de administração e de práticas desportivas, as contratações dos atletas profissionais, a imagem e o regime jurídico de trabalho destes, além de muitas outras situações que orbitam no “Mundo dos Esportes”.
As questões oriundas do contrato de trabalho do atleta profissional, que antes deviam ser esgotadas nas instâncias desportivas, passaram a ser dirimidas diretamente na Justiça do Trabalho desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, que além do princípio da inafastabilidade do acesso ao Poder Judiciário (art. 5º, XXXV), trouxe tal competência em norma originária e de eficácia plena, com aplicabilidade imediata[1].
Já a autonomia às entidades e associações esportivas foi dada pelo artigo 217, I[2] da Constituição de 1988, mas o rompimento com a intervenção estatal só foi normatizado em 1993 com o advento da Lei Zico[3] (cujo nome resulta das contribuições ao projeto dessa lei pelo então Secretário Nacional de Esportes em 1990), que inclusive extinguiu[4] o Conselho Nacional de Desportos, órgão federal tido como a última instância no esporte nacional até então.
Feita essa introdução, esclarecemos que nesse texto iremos tratar dos avanços no Desporto Profissional Brasileiro obtidos com a Lei Zico e com a Lei Pelé desde as suas criações até os dias atuais.
A Lei nº 8.672 de 6 de julho de 1993 (Lei Zico) atribuiu aos clubes a faculdade de se tornarem empresas, mas o tempo nos mostrou que essa transformação, dos clubes associativos em empresas, não necessariamente resulta em “Boa Gestão”. Mesmo assim, essa possibilidade é hoje debatida no Congresso Nacional como a “solução” dos clubes mal geridos.
Além disso, a Lei Zico conceituou os princípios fundamentais do desporto e suas finalidades à luz da Constituição, compôs o Sistema Nacional do Desporto, definiu regras para a Justiça Desportiva – agora de caráter privado –, para a comercialização do direito ao uso da imagem, e para a obtenção de recursos para o desporto, regulamentando para tanto os bingos e as loterias esportivas.
Embora essa lei tenha previsto o fim do “passe”, sua extinção ocorreu de forma gradual a partir da Lei 9.615 de 24 de março de 1998, a Lei Pelé.
Esse instituto jurídico – “passe” – foi conceituado pelo artigo 11 da Lei 6.354/76 da seguinte forma: “Entende-se por passe a importância devida por um empregador a outro, pela cessão do atleta durante a vigência do contrato ou depois de seu término, observadas as normas desportivas pertinentes.”.
Podemos acrescentar a essa definição a intenção de indenizar o clube que investia nos atletas enquanto estes não eram valorizados profissionalmente, revelando-os para o mercado, momento em que esse empregador podia ceder seus direitos sobre tais desportistas.
Para finalizarmos a análise sobre a “Lei Zico”, o saudoso Professor Álvaro Melo Filho, que tanto colaborou na feitura desse diploma legal, nos traz um apanhado de suas principais inovações:
“Com a ‘Lei Zico’ o conceito de desporto, antes adstrito e centrado apenas no rendimento, foi ampliado para compreender o desporto na escola e o desporto de participação e lazer; a Justiça Desportiva ganhou uma estruturação mais consistente; facultou-se o clube profissional transformar-se, constituir-se ou contratar sociedade comercial; em síntese, reduziu-se drasticamente a interferência do Estado fortalecendo a iniciativa privada e o exercício da autonomia no âmbito desportivo, exemplificada, ainda, pela extinção do velho Conselho Nacional de Desportos, criado no Estado Novo e que nunca perdeu o estigma de órgão burocratizado, com atuação cartorial e policialesca no sistema desportivo, além de cumular funções normativas, executivas e judiciais. Ou seja, removeu-se com a ‘Lei Zico’ todo o entulho autoritário desportivo, munindo-se de instrumentos legais que visavam a facilitar a operacionalidade e funcionalidade do ordenamento jurídico-desportivo, onde a proibição cedeu lugar à indução”.
Visto que a Lei Zico cumpriu o seu papel ao efetivar caros Direitos Fundamentais trazidos pela Lei Maior, é o momento de falarmos da norma que a revogou, a Lei 9.615 de 24 de março de 1998 (Lei Pelé), vigente até então.
Por ser mais completa, a Lei Pelé é a Lei Geral do Desporto, normatizando conceitos e princípios constitucionais, a natureza e as finalidades do desporto, o Sistema Brasileiro do Desporto, a prática desportiva nacional, as questões relativas ao cumprimento das normas e regras de prática desportiva, o controle de dopagem, a Justiça Desportiva, as fontes de recursos para o desporto, o torcedor como consumidor, dentre outras regras especiais.
Uma dessas regras é a recepção das normas internacionais, que se dá tão logo uma entidade nacional de administração do desporto aceite o regulamento de uma entidade internacional. Feito isso, o ordenamento jurídico brasileiro estará vinculado à norma estrangeira.
Fazendo jus à denominação de lei geral, a Lei Pelé traz a conceituação de competição profissional, como “aquela promovida para obter renda e disputada por atletas profissionais cuja remuneração decorra de contrato de trabalho desportivo”. Tal definição é utilizada por outras leis como o Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei 10.671/2003) e a Lei de Incentivo ao Esporte (Lei 11.438/2006).
Uma das inovações trazidas pela Lei Pelé foi a responsabilização dos dirigentes por seus atos, visando punir aquele que pratica gestão temerária.
Aqui deixamos uma crítica à norma[5], que ao adotar a Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica[6], dificultou a prova da má gestão. Melhor seria se a norma tivesse adotado critérios objetivos para a configuração da gestão ilícita, como o faz a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), vejamos:
LEI COMPLEMENTAR Nº 101, DE 4 DE MAIO DE 2000
Art. 1oEsta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.
§ 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.
Outro ponto polêmico está no artigo 87-A, p. Ú[7] da Lei Pelé, é a possibilidade que o atleta tem de ceder o uso da sua imagem até o limite de 40% da sua remuneração total.
É que o Erário passa a receber menos encargos e tributos quando clube e jogador optam por essa forma de remuneração, que tem natureza civil, pois a pessoa jurídica criada para essa operação sofre uma carga tributária bem menor.
Sempre atentos, os órgãos de administração tributária (Receita Federal, por exemplo), não vislumbrando a efetiva exploração do uso dessa imagem, imputam ao jogador a prática de abuso do direito – também conhecida por elusão fiscal –, autuando-o, e até representando o procedimento fiscal ao Ministério Público correspondente para a apuração de crime contra a ordem tributária.
Mesmo com uma série de alterações substanciais na Lei Pelé ao longo de sua vigência, ainda há falhas normativas que precisam ser corrigidas.
Um exemplo é o artigo 3º, §1º, I, que considera atleta profissional somente aquele que tenha contrato formal de trabalho assinado com um clube. Porém, tramita no Congresso Nacional o projeto da nova Lei Geral do Desporto que considera profissional todo e qualquer atleta que retire seu sustento da prática esportiva.
Na Lei Pelé, o instituto do “passe” deu lugar à denominação “passe livre” (artigos 28 e 92), prevendo a pactuação de cláusula penal em caso de descumprimento, rompimento ou rescisão. Com isso, o atleta pode trocar de clube quando bem entender, bastando pagar a multa pactuada, bem como se transferir para outro clube se assim expressamente desejar (artigo 38).
Importante ressaltar que a Lei Pelé é a norma imediatamente aplicável às demandas envolvendo atletas profissionais e seus clubes empregadores, de modo que somente se nesta houver lacuna, é que a CLT será aplicada, subsidiariamente.[8]
Diversos contratos foram tipificados pela Lei Pelé, regulando de melhor forma a relação entre o clube empregador e o atleta profissional.
De igual modo, a Lei Pelé foi importante ao regular direitos como os federativos, econômicos, ao uso da imagem, de arena, dentre outros, sempre os conceituando e os diferenciando. Mas também trouxe obrigações, como o registro contábil de direitos federativos e econômicos e a realização de exames de saúde periódicos em seus atletas.
Outra relevante novidade foi trazida pelo artigo 29 da Lei Pelé, que é o direito do clube formador ser ressarcido pelos custos da formação.
Na prática, esse instituto criou uma elite no futebol brasileiro, pois somente os clubes que cumprem custosas exigências[9] perante a CBF conseguem essa chancela. Atualmente apenas trinta e oito clubes do Brasil têm esse registro[10].
Ao revelarmos a existência dessa “alta sociedade” de clubes de futebol formadores, podemos deduzir que a realidade vivida pela grande maioria dos clubes que não tem tais fontes de recursos é outra.
A Lei de Incentivo ao Esporte (Lei nº 11.438, de 29 de dezembro de 2006) é um mecanismo apto a fazer com que esses pequenos e médios clubes se transformem em clubes formadores, mas é necessária a união de esforços entre estes e a classe empresária que receberá favores fiscais, observando-se sempre que é “razão de existir” dessa Lei a promoção da inclusão social dos desportistas.
É verdade que o Mecanismo de Solidariedade – outra novidade importada à Lei Pelé[11] –, cumpre o papel de fonte de recursos para os clubes não tão ricos como os formadores, mas isso não parece ser suficiente para manter a saúde financeira dessas entidades.
“O desporto condensa um singular pluralismo jurídico onde se mesclam instituições, regras e juízos, besta e bestiais, a exigir uma distribuição mais justa de sacrifícios e benefícios entre os atores desportivos.”
Nossa atual legislação desportiva enfrenta agora uma pergunta que parece já sabermos a resposta: como efetivar os direitos dos atletas que vivem exclusivamente do esporte, mas se encontram na base da pirâmide da classe, por não serem econômica e financeiramente bem-sucedidos como aqueles que costumamos ver na mídia?
Infelizmente o ordenamento jurídico desportivo em vigor não garante a justa distribuição de renda entre os atletas profissionais, nos restando então fomentar o debate para adequar essa realidade ao Projeto da Nova Lei Geral dos Desportos que tramita no Congresso Nacional[12].
O Escritório Costa & Menezes Advogados se encontra apto a te orientar e buscar a melhor solução para o seu caso.
Entre em contato conosco.
Texto de Ricardo Menezes Cordeiro.
Advogado especializado em Direito Tributário. Membro da Comissão de Direito Desportivo OAB/Barra da Tijuca, RJ. Pós-graduado em Estado e Direito pela Escola de Direito da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – Amperj. Pós-graduando em Tributação, Previdência, Finanças Públicas, Responsabilidade Fiscal, Empresa e Contabilidade pela Universidade Cândido Mendes. Cursando Gestão de Futebol na CBF Academy. Sócio Fundador do escritório Costa & Menezes Advogados Associados e do Grupo LR Consultoria e Soluções – Assessorias Jurídica | Contábil | e de Gestão de Imóveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- Gestão de negócios esportivos / Fauze Najib Mattar, Michel Mattar (org.). – Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
- Na trave: O que falta para o futebol brasileiro ter uma gestão profissional / Michel Fauze Mattar (org.). – 1. Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.
- CREPALDI, S. (2019). Planejamento Tributário. São Paulo: Saraiva.
- PAULSEN, Leandro. (2018). Curso de Direito Tributário – Completo. São Paulo: Saraiva.
- MELO FILHO, Álvaro. Futebol brasileiro e seu arcabouço jurídico. Migalhas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=26148>. Acesso em: 09 jul. 2006.
- Nova Lei Pelé: Avanços e Impactos. Álvaro Melo Filho. 352 páginas. Editora: Maquinária. 2011
- Site https://www.efdeportes.com/efd111/legislacao-desportiva-brasileira-caso-do-futebol-e-a-lei-do-passe.htm
- Site https://leiemcampo.blogosfera.uol.com.br/2019/08/06/sem-alvaro-melo-filho-brasil-perde-seu-maior-nome-do-direito-esportivo/
- https://leiemcampo.com.br/a-nova-lei-geral-do-esporte/
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8672.htm
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11438.htm
- https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128465
[1] CRFB/88, Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.
[2] CRFB/88, Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;
[3] Lei 8.672 de 6 de julho de 1993 – Art. 9º As entidades federais de administração do desporto são pessoas jurídicas de direito privado, com organização e funcionamento autônomos, e terão as competências definidas em seus estatutos.
[4] Lei 8.672 de 6 de julho de 1993 – Art. 65. Fica extinto o Conselho Nacional de Desportos.
[5] Lei 9.615/1998 – artigo 27. As entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais e as entidades de administração de desporto ou ligas em que se organizarem, independentemente da forma jurídica adotada, sujeitam os bens particulares de seus dirigentes ao disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, além das sanções e responsabilidades previstas no caput do art. 1.017 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, na hipótese de aplicarem créditos ou bens sociais da entidade desportiva em proveito próprio ou de terceiros.
[6] Lei 10.406/2002 – Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
[7] Incluídos pelas Leis nº 12.395 de 2011 e 13.155 de 2015.
[8] Lei 9.615/1998 – artigo 28, (…) § 4º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei (…) (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).
[9] https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201907/20190703151246_739.pdf
[10] https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/registro-transferencia/certificado-de-clube-formador
[11] Art. 29-A. Sempre que ocorrer transferência nacional, definitiva ou temporária, de atleta profissional, até 5% (cinco por cento) do valor pago pela nova entidade de prática desportiva serão obrigatoriamente distribuídos entre as entidades de práticas desportivas que contribuíram para a formação do atleta, na proporção de: (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011).
[12] Projeto de Lei do Senado n° 68, de 2017.
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